Conto: “Um tiro na morte”

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      Há mais coisas entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia possa imaginar. Pouca gente sabe, mas dentre nós, há pessoas que possuem dons sobrenaturais, dentre os quais, o de ver anjos. O fenômeno é uma dádiva ou carma, dependendo do ponto de vista. E Josué, jovem policial militar, é uma das raras pessoas no mundo que possuem este dom, sendo isso quase lhe rendeu um diagnóstico de esquizofrenia, quando adolescente. Sabendo dos problemas que tais visões lhe acarretariam, guardou o segredo para si. E além de ver anjos, Josué é exímio atirador, destes que a palavra erro não consta em seu vocabulário particular.

     Naquela noite, descansava quase sonolento no sofá. Lembrou-se do dia em que viu uma mulher que trajava uma roupa sensual negra beijando o rosto de sua mãe, adoentada sobre o leito hospitalar. De repente, em menos de minuto, a desconhecida se transformou num vulto, e logo desapareceu. Na sequência, sua mãe deu o último suspiro de vida. Viu a tal mulher em outras oportunidades, beijando outros rostos, que, em seguida, deixavam o plano físico. Concluiu então que a tal mulher de preto era o anjo da morte, e teve um desejo compulsivo de matá-la.

       Neste momento de cólera, ao seu lado, no sofá, apareceu um anjo com semblante irônico, cujo poder de persuasão era turbinado pelos desejos alheios…

          – Boa noite, Josué…

          – Boa noite! O que você quer? Sempre os vejo, mas nunca um de vocês quis se aproximar a ponto de conversar…

         – Sei dos teus desejos. Sei que quer acabar de vez com Etrom, e eu sei como você pode fazer isso!

          – Sabe? Então me diga…

      – Você, além de poder vê-la, tem outro dom: o de atirar muitíssimo bem. Então, lhe dou estar arma prateada com cápsulas de enxofre, mas é preciso que você atire certeiramente em seu coração, e aí, não existirá mais morte sobre a Terra…

        – O tiro, não erro. Só não sei como fazer para encontrá-la, já que ela aparece de surpresa e parece se teletransportar rapidamente, como num passe de mágica…

      – Tenho a lista dos próximos óbitos em sua cidade. Data, local e horário. O resto é contigo…

           No dia seguinte, com a arma num dos bolsos, Josué dirigiu-se ao quarto 115 da Santa Casa local, onde um amigo estava internado, nas últimas. Era questão de minutos para que Etrom aparecesse com sua maquiagem pálida, roupa negra e beijo fulminante. Não deu outra: Quando ela se materializou em sua frente, empunhou a arma prateada, e a cápsula de enxofre invadiu o seu seio esquerdo, próximo ao coração.

     Viu um pelotão de anjos socorrendo Etrom, e não entendeu nada. Outro pelotão, chamados de “Anjos da consciência” o algemou, levando-o para um lugar ermo, onde o interrogaram com aspereza:

       – Você ficou louco?

       – Eu só quis acabar com a morte na Terra, que mal há nisso?

       – Quem lhe deu aquela arma? Só ela é capaz de matar Etrom, e mesmo assim, é preciso ser com um tiro certeiro no coração….

       – Era um de vocês! Não me disse o nome, mas se distinguia por exalar uma luz púrpura e ofuscante…

       – Idiota! Não conseguiu compreender que se tratava do anjo de luz, o anjo decaído, o príncipe das trevas?

       – Mas não faz sentido! Ele também depende de Etrom para que as almas perdidas sejam encaminhadas para o inferno!

      – O inferno não existe, Josué! E é exatamente por isso que ele queria que você matasse Etrom, o anjo da morte!

    – Me explica, porque eu estou sem entender!

    – Você fez tudo o que o que ele queria! Na ausência da morte, todos viverão, a população do planeta aumentará absurdamente,  haverá escassez de pão e água! Acontecerão guerras intermináveis, sofrimento ainda maior, e o planeta se transformará efetivamente no próprio inferno! Doentes incuráveis padecerão pela eternidade, pois para eles, a morte seria a única possibilidade de cura!

    – Me desculpem, eu nunca havia pensado nisso. Mas agora, já foi…

   – Não, você se engana. Nossa legião de anjos curadores se encarregou de realizar a cirurgia em Etrom, que sofreu um tiro não tão certeiro quanto você imaginava. Em questão de minutos, ela estará curada, e irá te beijar no rosto….

  – Como assim, e por quê?

  – O que você fez, Josué, anteciparia o Apocalipse, mudando o curso natural das coisas. A partir de hoje, você sabe demais. E para o bem de tudo e de todos, você precisa morrer. Está sentenciado à pena de morte!

  – Não! Não é justo…

  Etrom então veio, escoltada por outros anjos, mais forte e vigorosa que antes. Não trazia no semblante ar de vingança, pelo contrário, parecia piedosa, porém, ciente da sua missão. Aproximou-se e abriu os lábios com o intuito de dar o beijo em Josué, que gritava desesperadamente…

   … Foi quando o policial militar acordou sobre o sofá, com a farda amassada e o suor gelado brotando em bicas na testa. Atordoado com aquele pesadelo, dirigiu-se a cama, e entendeu que a morte, de certa forma, é cura e purificação. Só então entendeu que através dela, almas evoluem e nunca morrem…

* O Eldoradense

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